12 abril, 2006

"Que azar!"

[trecho de "As Intermitências da Morte", de José Saramago]
"O camarote estava vazio. Atrasou-se, disse consigo mesmo, deverá estar a ponto de chegar, ainda há pessoas a entrar na sala. Era certo, pedindo desculpa pelo incómodo de fazer levantar os que já estavam sentados os retardatários iam ocupando suas cadeiras, mas a mulher não apareceu. Talvez no intervalo. Nada. O camarote permaneceu vazio até o fim da função. Contudo, ainda havia uma esperança razoável, a de que, tendo-lhe sido impossível vir ao espectáculo por motivos que já explicaria, estivesse à sua espera lá fora, na porta dos artistas. Não estava. E como as esperanças têm esse fado que cumprir, nascer umas das outras, por isso é que, apesar de tantas decepções, ainda não se acabaram no mundo, poderia ser que ela o aguardasse à entrada do prédio com um sorriso nos lábios e a carta na mão. Aqui a tem, o prometido é devido.Também não estava. O violoncelista entrou em casa como um autômato, dos antigos, dos da primeira geração, daqueles que tinham de pedir licença a uma perna para poderem mover a outra. Empurrou o cão que o viera saudar, largou o violoncelo onde calhou e foi-se estender em cima da cama. Aprende, pensava, aprende de uma vez, pedaço de estúpido, portaste-te como um perfeito imbecil, puseste os significados que desejavas em palavras que afinal de contas tinham outros sentidos, e mesmo esses não os conheces nem conhecerás, acreditaste em sorrisos que não passavam de meras e deliberadas contracções musculares, esqueceste-te de que levas quinhentos anos às costas apesar de caridosamente to haverem recordado, e agora eis-te aí, como um trapo, deitado numa cama onde esperavas recebê-la, enquanto ela se está rindo da triste figura que fizeste e da tua incurável parvoíce. Esquecido já da ofensa de ter sido rejeitado, o cão veio consolá-lo. Pôs as patas da frente em cima do colchão, arrastou o corpo até chegar à altura da mão esquerda do dono, ali abandonada como algo inútil, inservível, e sobre ela, suavemente, pousou a cabeça. Podia tê-la lambido e tornado a lamber, como costumam fazer os cães vulgares, mas a natureza, desta vez benévola, reservara para ele uma sensibilidade tão especial que até lhe permitia inventar gestos diferentes para expressar sempre as mesmas e únicas emoções. O violoncelista virou-se para o lado do cão, moveu e dobrou o corpo até que sua própria cabeça pôde ficar a um palmo da cabeça do animal, e assim ficaram, a olhar-se, dizendo sem necessidade de palavras, Pensando bem, não tenho idéia nenhuma de que és,mas isso não conta, o que importa é que gostemos um do outro. A amargura do violoncelista foi diminuindo a pouco e pouco, em verdade o mundo está mais que farto de episódios como este, ele esperou e ela faltou, ela esperou e ele não veio, no fundo, e aqui para nós, cépticos e descrentes que somos, antes isso que uma perna partida. Era fácil dizê-lo, mas bem melhor seria tê-lo calado, porque as palavras têm muitas vezes efeitos contrários aos que se haviam proposto, tanto assim que não é raro que estes homens ou aquelas mulheres jurem e praguejem, Detesto-a, Detesto-o, e logo rebentem em lágrimas depois da palavra dita. O violoncelista sentou-se na cama, abraçou o cão, que lhe pusera as patas nos joelhos em último gesto de solidariedade, e disse, como quem a si mesmo se repreendia, Um pouco de dignidade, por favor, já basta de lamúrias.
[...]"